Pra aprofundar o debate sobre trajetórias e perspectivas da Ciência Aberta, na tarde da terça-feira (06/08), a segunda mesa, mediada pela doutoranda Camila Belo, teve como tema central a história e a memória da ciência aberta, com a proposta de fortalecer a compreensão histórica dessa temática e a importância da memória na construção de perspectivas.
Kizi Araújo, professora do PPGICS, inaugurou as falas com sua apresentação, intitulada “Acesso Aberto: uma breve introdução”. A pesquisadora abordou o papel da comunicação científica e destacou a centralidade da comunicação na ciência. Discorrendo sobre a trajetória do processo de comunicação científica no bojo do surgimento dos periódicos, Kizi Araújo falou sobre o início do modelo de avaliação por pares. A professora pontuou a dinâmica da atividade científica e o fato de que a ciência é feita com base em conhecimentos prévios, o que coloca a comunicação do conhecimento produzido como um elemento central no fazer científico: “Os pesquisadores não apenas constroem produção científica, mas também consomem”. Assim, tanto publicar como ter acesso ao que já foi produzido são fundamentais para a consolidação e a produção do conhecimento científico.
Para reforçar seu argumento, a professora historicizou o tema explicitando o contexto do crescimento exponencial da ciência e o surgimento, diante desse panorama, de uma mudança no modelo de publicação, que passou a se voltar para um modelo de negócio, retroalimentado pelo modo de avaliar a ciência. Kizi Araújo também destacou fatores importantes para o início do movimento de Acesso Aberto, como o aumento do número de periódicos, o surgimento da internet e o questionamento da ciência como um bem público, especialmente no contexto brasileiro, onde majoritariamente a produção científica é financiada por recursos públicos. Nesse panorama, a professora destaca o Open Access Journals (Doaj), diretório de Acesso Aberto no qual estão cadastrados mais de 13 mil periódicos, tendo o Brasil como o terceiro país com o maior número de revistas cadastradas.
Kizi Araújo reafirmou a importância do Acesso Aberto para tornar acessível o conhecimento, visto aqui como um bem público, destacando a iniciativa brasileira de abertura do acesso às produções sobre o Zika Vírus e também os movimentos deflagrados durante a pandemia para garantir o Acesso Aberto às produções sobre o Covid-19: “O Brasil é o país que mais possui revistas científicas de Acesso Aberto, a maioria concentrada em instituições de pesquisa e educação”. Ela, no entanto, finalizou ressaltando as dificuldades ainda existentes para a consolidação/adesão do movimento do Acesso Aberto e questionado o papel de cada um nesse processo: “O Brasil ainda não possui uma política nacional que verse sobre esse assunto”.
Na sequência, Simone Weitzel, bibliotecária, mestre e doutora em Ciência da Informação e docente do Programa de Pós-Graduação em Biblioteconomia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), apresentou o trabalho “Origens, avanços e perspectivas do Acesso Aberto”.
Em diálogo com Kizi Araujo, a professora abordou os eventos fundamentais para que o Acesso Aberto chegasse, em 2010, à Declaração de Budapeste, quando é recomendado por meio da Via Verde (autoarquivamento) ou Via Dourada (publicação periódica sem custos para o leitor).
Via Verde (green road) pode ser entendida como a criação de repositórios institucionais de acesso livre e aberto para depósito, organização e disseminação de publicações científicas. Assim, possibilita o arquivamento da produção científica feita pelo próprio autor ou autora do artigo já publicado ou aceito para publicação a partir do sinal verde do editor.
A Via Dourada (golden road) é o nome dado para o movimento que promove a criação de revistas de acesso aberto. Dessa forma, se relaciona com a produção de artigos científicos em periódicos eletrônicos de acesso livre na web, sem restrição de uso, disponibilizado pelas revistas científicas.
Ela aponta que foi no campo das humanidades que se inicia o movimento e destaca a proposta subversiva de Stevan Harnad, que defendia a importância de publicar fora do eixo comercial, mas ainda não havia uma infraestrutura que viabilizasse a ideia. Simone Weitzel falou também sobre a criação do servidor de pré-print LANL por Paulo Ginsparg, em 1991 (com o intuito de facilitar a troca da produção não publicada entre os pares) e a iniciativa de arquivos abertos (OAI), nos quais os metadados poderiam ser expostos.
Na sequência de sua apresentação, a pesquisadora destaca as duas principais estratégias da Declaração de Budapeste – o autoarquivamento, um ato político que tornava o pesquisador responsável também pela disseminação, e o acesso sem custos do público aos periódicos. Contudo, tais propostas sofreram reveses com o passar dos anos, com destaque para a dificuldade da sustentabilidade dos repositórios institucionais como principal desafio. Isso aumenta os embargos da Via Verde, e as altas taxas para publicação da Via Dourada.
Simone Witzel falou sobre a “Febre Dourada”, a apropriação do “dourado” pelo modelo comercial de publicação científica que prioriza a Via Dourada para dar celeridade às publicações e rebaixa a importância da Via Verde, distorcendo a ideia de Acesso Aberto: “O investimento apenas no acesso Dourado traz diversos reveses. O Acesso Aberto virou sinônimo de pagamento de APC (taxa de processamento de artigos), em uma lógica mercadológica que amplia as desigualdades entre países ricos e pobres”. Além disso, critica o Acesso Aberto a qualquer preço: “A pesquisa já está paga, pelo salário dos pesquisadores, pelo financiamento, e a publicação deve ser um retorno à sociedade”.
Assim, para Weitzel, a produção científica não pode ser centralizada só no periódico: “Os altos valores gastos nas APCs poderiam ser revestidos para o fortalecimento de periódicos de Acesso Aberto e de repositórios. A ciência precisa disso tudo e não de um pouquinho de cada”. Ela ainda apontou as enormes limitações de abertura de acesso às pesquisas sobre o Covid-19 na pandemia e outras iniciativas, nas quais apenas pequena parte das produções foi de fato disponibilizada. Por fim, afirmou, assim como Kizi Araujo, a necessidade de mais estudos sobre o Acesso Aberto e convocou todos para a luta, pois cada um pode fazer a diferença.
Michely Vogel, bibliotecária, doutora e mestre em Ciência da Informação e professora do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade federal Fluminense (UFF), encerrou a mesa com sua fala intitulada “O cenário atual do movimento de Acesso Aberto”.
Ela relembrou pontos de destaque das falas anteriores e afirmou que “só existe Ciência Aberta porque existe um movimento de Acesso Aberto”. A professora destacou a necessidade de reconhecer e mostrar a qualidade das revistas nacionais, pois “não tem como a gente continuar usando base de dados comerciais”, e pontuou que sua relação com o movimento de Acesso Aberto é também de militância.
Nesse contexto, Vogel afirmou que “a luta do Acesso Aberto e da ciência aberta é também por uma infraestrutura mais justa de pesquisa”, e como isso conversa também com a agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). Vogel conceituou o que é a publicação científica em contraste com o que tem sido, em um processo no qual deixou de ser “um novo olhar para ciência” e passou a ser “um método de avaliação de instituições e pesquisadores”, inserindo os pesquisadores em uma lógica produtivista.
Michely Vogel, nesse contexto, foi contundente ao afirmar que “a gente não pode falar de Acesso Aberto sem ter clareza do que é a comunicação científica e o que ela tem sido” e destaca a figura do repositório como a melhor alternativa para a consolidação desse movimento. Para ela, os repositórios precisam de investimento e poderão ser uma saída quando forem confiáveis, estáveis, interoperados, com busca e navegação amigáveis e com o processo de revisão. Tal ideal permitiria evitar a dependência de revistas comerciais e a ruptura com a lógica produtivista e de precarização do pesquisador, visto nessa ótica como uma “máquina de paper”.
Nesse sentido, Michely apontou que esse modelo faz os pesquisadores publicarem sem amadurecer as suas pesquisas, convidando todos a refletir sobre como vamos mudar esse cenário e reafirmando a necessidade de uma revisão das formas de avaliação. Para a pesquisadora, essa lógica está afundando a ciência brasileira e, por isso, a Ciência Aberta precisa “tocar nessa ferida”, pois esse sistema tem causado adoecimento por conta das pressões por números de artigos publicados.
Por fim, a professora apresentou o “Manifesto EBBC por uma Política Nacional de Acesso Aberto e Melhores Práticas para Avaliação da Ciência Brasileira”. O Manifesto, publicado em 2024, tem entre suas redatoras Michely Vogel e Kizi Araújo e traz 14 recomendações voltadas tanto para os envolvidos nas políticas de Acesso Aberto como para os especialistas no tema. A fala foi encerrada deixando a reflexão de que é preciso ir atrás de todos os envolvidos no processo de Acesso Aberto, rompendo as fronteiras da bolha dos especialistas.