Estudo liderado pela Organização Mundial de Saúde e publicado pela revista científica The Lancet apontou que, nos últimos 50 anos, os esforços globais de imunização salvaram cerca de 154 milhões de vidas – ou o equivalente a seis vidas a cada minuto de cada ano. A grande maioria das vidas salvas – 101 milhões – foi de crianças. Os dados mostram que a imunização é a maior contribuição entre as intervenções de saúde para garantir que os bebês não apenas vejam seus primeiros aniversários, mas continuem levando vidas saudáveis até a idade adulta.
O estudo descobriu também que, para cada vida salva por meio da vacinação, cerca de 66 anos de saúde plena foram ganhos, perfazendo um total de 10,2 bilhões de anos de saúde plena ganhos ao longo desses 50 anos. Por exemplo, como resultado da vacinação contra a poliomielite, mais de 20 milhões de pessoas que teriam sofrido paralisia podem andar. O mundo está prestes a erradicar a pólio.
No entanto, ampliada pela desinformação e pelos movimentos antivacina, além de conflitos político-sociais e crises econômicas, a cobertura vacinal caiu para o nível mais baixo dos últimos 30 anos.
Esse cenário tem sido base para estudos, pesquisas e debates com o objetivo de compreender o momento contemporâneo e promover ações que consigam vencer as ameaças aos esforços para vacinar crianças, principalmente, no Brasil e no mundo.
No campo da comunicação e saúde, o tema faz parte de inúmeras pesquisas. Três pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS) também se debruçaram para analisar, nos últimos 3 anos, as complexas conjuntaras do cenário contemporâneo sobre os desafios relacionados à ciência, confiança, verdade e comunicação. Parte dos resultados está no livro “(Des)Informação em saúde: na perspectiva das mediações”, escrito por Igor Sacramento, Hully Falcão e Ana Carolina Monari, que será lançado no dia 16 de dezembro. Editado pela Mauad, com financiamento da Faperj, a publicação tem como principal proposta oferecer outro olhar para os estudos da desinformação em saúde.
Igor Sacramento conta que o encontro dos três em meio ao cenário, principalmente o brasileiro, os motivou a pesquisar caminhos e possibilidades sobre o tema. Para ele, vivemos, no Brasil e no mundo ocidental, uma crise da democracia, de seus princípios, valores e práticas: “Um deles é a ideia de bem comum ou de coletivo, como uma produção de generalização do 'todo mundo'. A saúde pública, particularmente no campo das imunizações, se valia desse princípio coletivizante, de garantia de direitos sociais coletivos, como a vacinação para todos e todas era vista e praticada como uma forma de proteger a todos e todas. A vacinação era, e dessa forma se estruturou no Brasil, parte de um projeto de modernização da nação e do exercício da cidadania, assim como um conjunto amplo de serviços, direitos, garantias e reparações”.
Igor Sacramento cita Michel Foucault e seu dignóstico de estarmos vivendo em uma governamentalidade neoliberal, para a qual o princípio da individuação do risco é central: “Há uma profunda e intensa transferência da responsabilidade do Estado e suas instituições para o próprio indivíduo. Nesse contexto, que é o presente que vivemos, os valores que eram fundamentais na e para a democracia moderna (o comum, o coletivo, o mundo compartilhado) estão sob intensa concorrência da valorização da escolha individual, da escolha pessoal, da liberdade individual, inclusive para se vacinar ou não. Este deve ser, na retórica neoliberal, um cálculo individual. O que é mais arriscado: a vacina ou a doença? Nesse processo, que é, sem dúvidas, alimentado pelos discursos antivacinação e pelas narrativas desinformacionais, o indivíduo é cada vez mais instado a conviver em grupos, em coletividades de assemelhamento ideológico, e cada vez menos quer ou sabe conviver com a diferença. Há cada vez mais uma cisão com a alteridade e com a diferença e uma busca por viver com os seus. O fenômeno da desinformação é parte fundamental desse momento e da conjuntura atual da crise da democracia”.
O encontro dos três pesquisadores ocorre nesse contexto. Ana Carolina Monari ressalta que, assim, o livro reúne todo o trabalho que os três estão realizando nos últimos anos, diante do cenário intensificado com a pandemia de Covid-19, e o conhecimento produzido sobre desinformação, grupos e comunidades relacionados ao campo da comunicação e saúde: “Propomos um novo caminho teórico-metodológico para se pensar a desinformação, especialmente no Brasil. Realizamos discussões sobre múltiplos negacionismos, a ação da mídia nesse ecossistema, o lugar das emoções do pesquisador e do pesquisado, o testemunho e a atuação dos divulgadores científicos no cenário digital e no combate à desinformação”.
Hully Guedes Falcão concorda: “Esse é um bom resumo sobre nosso trabalho, mas gostaria de complementar que parte importante desse caminho é o fato de tentarmos pensar em como se opera os sentidos da informação na sua relação com o conceito de desinformação, justamente para problematizar e desnaturalizar tal conceito. Além de analisar as questões éticas de trabalho relacionadas a essa temática”.
Igor Sacramento, Ana Carolina Monari e Hully Falcão relatam que foram instigados pela leitura de estudos sobre desinformação, incluindo também aqueles que abordam fake news, pós-verdade e teorias conspiratórias. Para Igor, eles geralmente padecem de gravíssima miséria teórica: “Por exemplo, ao contrário da percepção comum das empresas de comunicação, o termo fake news é em si mesmo falho, pois acaba por designar também uma crise do paradigma jornalístico dominante, combinada com modelos econômicos das corporações de mídia. Portanto, para abordá-lo diretamente, é preciso analisar suas condições epistêmicas, geradas por tecnologias midiáticas específicas e sua organização econômica e social, culminando com estudos de caso das chamadas teorias da conspiração como uma forma de um regime específico de verdade denominado pós-verdade”.
As pesquisas agora publicadas no livro refletem que, frequentemente, tais noções e os fenômenos que elas apontam são trabalhadas como concepções que acabam por se mostrarem limitadas sobre verdade, política e cultura, reforçando uma visão elitista sobre a ignorância alheia, do outro: “Elas têm pouco interesse em estudar as implicações e motivações que estruturam os processos atuais de produção, circulação, consumo e apropriação de informações em suas relações com os intensos processos de polarização política, de governamentalidade neoliberal e de dessecuralização do espaço público. As crenças, os valores, as moralidades, as religiosidades e os posicionamentos político-ideológicos, bem como as práticas e mediações socioculturais envolvidas, são apartadas do debate ou, quando incluídas, servem para garantir ou reforçar a ignorância desses outros e não como operadores analíticos poderosos para compreender as especificidades do nosso presente e da atual crise da democracia”, completa Igor Sacramento.
Para o pesquisador e as pesquisadoras, falta realizar mais estudos empíricos, que se debrucem, e queiram se embrenhar, sobre grupos, comunidades e canais nas plataformas de comunicação on-line e em redes sociais, como Telegram, Twitter, WhatsApp, Instagram, mas também estudos que foquem em diferentes grupos sociais conservadores, para tentar compreender o afastamento de preceitos científicos considerados como consensuais e consolidados.
“Por isso, afirmo que nosso livro parte de algo novo, de uma aproximação da perspectiva de Jesús Martín-Barbero, das mediações à teoria antropológica, especialmente da etnografia, para analisar criticamente o fenômeno da desinformação em grupos e canais antivacinação em diversas plataformas de comunicação on-line. O que tenho observado nas minhas pesquisas com Hully Falcão e Ana Carolina Monari, todas de caráter etnográfico, é que há uma grande circulação de textos científicos (notas, artigos, preprints) apropriados e incorporados que ajudam a reforçar e reafirmar a antivacinação como princípio e valor, mas também como identidade política-ideológica e afinidade afetiva com determinadas crenças e atores sociais e políticos”, finaliza Igor.
Sobre o autor e as autoras
Igor Sacramento é doutor e mestre em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ), tendo realizado estágio pós-doutoral na mesma instituição. É pesquisador do Laboratório de Pesquisa em Comunicação e Saúde do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Laces/Icict/Fiocruz) e professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da UFRJ e do Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS), no qual, atualmente, exerce a função de coordenador.
Hully Guedes Falcão é mestre em Sociologia e doutora em Antropologia pelo UFF. Atualmente, é pesquisadora de pós-doutorado pelo Programa de Pós-Doutorado FAPERJ Nota 10 no Laboratório de Comunicação e Saúde e no PPGICS, na Fiocruz. É pesquisadora associada no Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisa (Nufep/UFF-InEAC), Núcleo de Estudos Estratégicos de Circulação e Políticas Científicas (NEECPC/CITE-LAB/UFF) e no Instituto Nacional de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INCT-InEAC). Membro do Comitê de Ética em Pesquisa nas Ciências Humanas da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) desde 2021 e do GT Ética em Pesquisa - FCHSSALLA desde 2022. É professora no curso de Tecnólogo em Segurança Pública na UFF/CEDERJ, participando da coordenação dos grupos de iniciação cientifica nos diferentes polos do Cederj através do Laboratório de Iniciação Acadêmica e Científica (Labiac).
Ana Carolina Pontalti Monari é doutora pelo PPGICS e foi orientada por Igor Sacramento e Hully Guedes Falcão. Sua tese, intitulada “Quem consome fake news consome fake news? Os usos e os sentidos atribuídos à ciência e ao jornalismo nos canais sobre Covid-19 no Telegram”, recebeu o Prêmio Oswaldo Cruz de Teses na área de Ciências Humanas e Sociais em 2024. Atualmente, é pós-doutoranda do Laboratório de Inteligência Artificial (Recod.ai), do Instituto de Computação (IC), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no projeto Horus: Técnicas de Inteligência Artificial para Identificar e Prevenir Realidades Sintéticas, com financiamento Fapesp.
Igor Sacramento, Hully Guedes Falcão e Ana Carolina Monari são pesquisadores integrantes do Núcleo de Estudos em Comunicação, História e Saúde (NECHS - Fiocruz/UFRJ) e dos projetos “Formação de trabalhadores da atenção primária à saúde para o enfrentamento à desinformação sobre vacinação” (CNPq) e “Formação de comunicadores da saúde em contextos de desinformação” (Inova-Fiocruz).
Serviço:
Lançamento do livro (Des)Informação em saúde: na perspectiva das mediações, de Igor Sacramento, Hully Guedes Falcão e Ana Carolina Monari
Data: 16 de dezembro de 2024
Hora: das 18h às 20h
Local: Livraria Leonardo Da Vinci - Av. Rio Branco, 185 - subsolo - 1 - Centro, Rio de Janeiro