O último dia da Semana de Abertura do PPGICS 2024, que teve como tema O direito à saúde: os lugares para a informação e a comunicação, promoveu o debate Ética na pesquisa acadêmica e o mundo digital, que contou com a participação de Antônio Fausto Neto, Denise Carvalho e J. Antônio Cirino, além da mediação de Igor Sacramento.
Especialista em análise do discurso e um dos principais nomes da pesquisa em comunicação no Brasil, Antônio Fausto Neto foi o primeiro a falar. Propôs uma reflexão sobre a nova inteligibilidade do acontecimento ao observarmos a cultura, o fluxo, a manifestação de processos comunicacionais ao longo da história, que não estão mais, atualmente na mão dos meios de comunicação de massa: “pensemos sobre a mudança e a relação entre ambiência midiática e ambiência midiatizada”.
Fausto Neto convidou a todos a pensar sobre alguns cominhos trilhados pelos estudos da comunicação, desde a década de 60, quando as manifestações e os atos de maio de 1968 foram pensados sob a luz de parâmetros teóricos das matrizes comunicacionais, resquícios de correntes funcionalistas, que se propunha examinar o papel da comunicação na “ação social organizada”: Era o contexto da comunicação das inovações. Pierre Nora nos falava sobre o papel dos meios de comunicação na época , assim como Roland Barthes nos trazia a atualização do conceito de acontecimento e seus escritos, ao lado de Michel de Certeau, que discorria sobre a enunciação e o acontecimento apropriado pela palavra”.
Para o professor, a crítica aos limites desse modelo de explicação favorecereu a chegada de outros pontos de vista que estimularam os estudos da comunicação aplicados e relacionados a outras práticas sociais, como novos aportes teóricos-metodológicos. Autores como Pierre Bourdieu, Adriano Rodrigues e Martín-Barbero, em diferentes momentos e contextos, foram importantes para pensarmos nas falas intermediárias dos meios de comunicação, suas gramáticas e éticas, além de proporcionarem as bases dos estudos que vão relacionar o campo dos media com os demais campos sociais: “Com Bordieu e Rodrigues, especificamente, comecei a pesquisar as relações entre comunicação e saúde em um contexto maior”.
Fausto Neto estudou a história midiática da aids no Brasil, que envolveu processos de midiatização, que são interligados como um dispositivo ampliado da esfera pública, publicando, em 1991, o livro Mortes em derrapagem: os casos Corona e Cazuza. “Estudar a aids no campo midiático me levou a pesquisar a relação da comunicação com a educação, com a construção de novas práticas de religiosidade e com a prática de saúde. Analisar o discurso interpretativo , seu registro e sua construção, para além da fala editorial. Com a covid-19, me aprofundei mais uma vez nesse universo para compreender as gramáticas em funcionamento da dor, da surpresa, da contenção. O acontecimento volta com relatos e reminiscências na recepção e produção de discursos midiáticos, suas relações com valores éticos e morais na amplitude do mundo digital”.
A professora Denise Carvalho falou em seguida, agradecendo a Fausto Neto a possibilidade de começar direto com as análises de dados depois do caminho percorrido com a ajuda dele pelos diferentes contextos dos processos de comunicação e das questões éticas que os evolvem.
Denise apresentou suas pesquisas que trabalham a relação entre preconceitos, registros, dados e produção de informação e comunicação, tendo como premissas os desafios éticos que surgem com a materialidade física e digital do atual contexto: “Lidamos com meios digitais muito recentes, mas que envolvem um problema antigo. A sociedade brasileira, historicamente, foi consolidada sobre as bases do racismo, do patriarcado e do classismo que desprezam direitos fundamentais, ou seja, aqueles que não são negociáveis”.
Primeiro, foi apresentada a pesquisa sobre mortalidade materna de mulheres negras. Segundo do SIM/DataSUS, nas duas últimas décadas, a taxa de mortalidade materna de mulheres negras é duas vezes maior do que a de mulheres brancas. As mulheres negras têm menos tempo nas consultas de pré-natal, esperam mais tempo para serem atendidas, têm menos autorização pelo serviço de saúde de terem acompanhantes na hora do parto e são as que têm mais partos normais (53,3%) em comparação com as brancas (48,8%). Parte da pesquisa pode ser acessada no texto O quesito cor/raça: desafios dos indicadores raciais de mortalidade materna como subsídio ao planejamento de políticas públicas em saúde.
“As mulheres negras não recebem analgésicos, tratamento, pré-natal, atenção médica, cuidado. Além disso, há, historicamente, muito mais registros de mulheres brancas, o que acaba por impedir também o desenvolvimento de políticas públicas, projetos e ações para diminuir desigualdades e violências”, completa Denise. Após mais de três décadas do SUS, é importante pensar sobre o papel da comunicação como metodologia estratégica para estimular a participação da população na política de saúde pública a fim de superar desigualdades sociais e raciais nas políticas e estratégias de saúde”.
O racismo que se explicita no levantamento de dados e informações sobre as mulheres negras também é observado e se manifesta em resultados de busca. Denise Carvalho apresentou, durante sua fala, como desafios trazidos pela inteligência artificial e pelas tecnologias digitais explicitaram debates sobre produção e influências relacionadas a percepções e comportamentos humanos: “Em pesquisa sobre bancos de imagens utilizando palavras-chaves “Family”, “Black Family” e “White Family”, com Fernanda Carrera (UFRJ), buscamos compreender de que forma aparatos tecnológicos atuais, como algoritmos, chatbots e mecanismos de busca podem ser discriminatórios e reproduzir associações estereotipadas e nocivas a respeito de gênero. Analisamos mais de 2 mil fotos e ilustrações e identificamos a hiper-ritualização, conceito de Goffman, da solidão da mulher negra. As tecnologias não são neutras porque foram construídas dentro de um contexto social e expostas a ele” (Algoritmos racistas: a hiper-ritualização da solidão da mulher negra em bancos de imagens digitais).
Denise explica que o processo da vida social retrata cenas cujos personagens exercem papeis de masculinidade e feminilidade, por exemplo, em um ritual familiar e espelha esses papeis em gestos, posturas e expressões. Em um dos estereótipos percebidos, as imagens traziam mulheres negras sozinhas em 14,01% dos resultados, enquanto o número entre mulheres brancas era de 9,25% nas mesmas buscas.
No entanto, ela lembra que tecnologias discriminatórias não são, geralmente, feitas de forma consciente: “No setor, a maioria dos funcionários são homens brancos, héteros e de classes sociais média ou alta. E esse é também um dos motivos da falta de diversidade”.
Outro problema grave é o enviesamento de dados. Os algoritmos não são neutros ou imparciais. O viés histórico, arcaico – social e cultural – aparece em modelos tecnológicos e em categorizações e no viés da interpretação humana. Todos esses vieses são inseridos no aprendizado de máquina. Por exemplo, o modelo desenvolvido nos EUA para descobrir a probabilidade de pessoas cometerem crimes a partir do cruzamento de informações biométricas do rosto e de fichas criminais. Como a tecnologia se alimentou de dados de criminalidade racialmente carregados, ela pode legitimar a violência contra grupos marginalizados.
Para Denise, promover debates sobre o viés da tecnologia é uma estratégia necessária de enfrentamento. Sobre o assunto, o texto “Mitigando vieses no aprendizado de máquina: uma análise sociotécnica”, de autoria de Denise Carvalho, Lívia Ruback e Sandra Avila, nos ajuda a pensar nas implicações sociais e culturais dos modelos e vieses, além de apontar direções para mitigá-los, com base em soluções computacionais, como o balanceamento das bases de dados utilizadas dos modelos e das métricas alternativas para avaliar estes modelos, até soluções não computacionais, regulação do uso dos modelos e políticas para promover a diversidade na tecnologia e na academia.
O último a falar foi J. Antônio Cirino, que apresentou o livro “A infecção e suas memórias: o testemunho e a exposição do viver com HIV no YouTube”, em coautoria com Igor Sacramento. Fruto de sua pesquisa de pós-doutorado, a publicação mostra a importância que plataformas como o YouTube têm na luta contra o estigma do HIV.
Cirino falou sobre o comprometimento ético na coleta e na escolha do material a ser pesquisado e estudado: “Tivemos o cuidado de trazer falas e comentários que não reforçassem estigmas ou provocassem exposições fora dos contextos e espaços em que surgiram. Decidimos manter as falas, as respostas e as perguntas exatamente como foram escritas, com suas particularidades. Analisar a interação a partir dos vídeos e canais, tornou-se fundamental para entendermos permanências e mudanças relacionadas à percepção sobre HIV/aids”.
A publicação é dividida em cinco capítulos: YouTube como lugar de enunciar e arquivar a si mesmo; HIV/aids, homossexualidade e YouTube; Educação sexual como pedagogia pública; Para além do pânico moral e da estigmatização; O discurso motivacional e o pensamento positivo.
Os autores, ao longo do texto e durante a apresentação na Semana de Abertura, nos direcionam para enxergarmos e compreendermos a plataforma como um arquivo para a memória subjetiva – dos autores e responsáveis pelos canais – e social futura do HIV, além de problematizar a vida com HIV em época também marcada pela indetectabilidade e intransmissibilidade.
Para Igor Sacramento e J. Cirino, a reconstrução de si pelo testemunho é uma consideração importante desta obra. Por meio das narrativas autobiográficas com características de televisualidade circulada pelo YouTube, tanto aquele que testemunha como a audiência do testemunho têm possibilidades de beneficiar-se em sua reedição diuturna para a melhoria de si e do mundo em que vivemos quando consultamos as memórias arquivadas”.
O texto, dividido em cinco capítulos, apresenta depoimentos retirados do Youtube e as análises feita pelos autores que, segundo Baselga, se inserem “na feroz luta pelos termos pelos quais se define uma situação de saúde e, portanto, a identidade da multiplicidade de subjetividades que, tendo em comum a vivência com o HIV, apresentam vidas divergentes, descentradas e diversas”.
A multiplicidade de subjetividades, de vidas e discursos se encontra com memórias reminiscentes e estereotipadas, possibilitando a construção de novas e outras narrativas.
Para ver as mesas da Semana de Abertura na íntegra, acesse: https://www.youtube.com/playlist?list=PLz0vw2G9i8v8Z2VBrTJH3iiwIEmQSrOo